Não escondo a ninguém que encaro como errado o projecto de vida actual e tudo o que vem a seu reboque…
O trabalho das 9h às 19h, a palmadinha nas costas do credito bancário a 50 anos, a reforma aos setenta, o condomínio fechado com 2 metros quadrados de relva para passear o cão, o só se ser considerado enquanto se acrescenta alguma valia, o bronze trazido da costa da Caparica brasileira em pleno Inverno para exibir à 6ªf à noite, o cartão da Unicef comprado no Natal para tranquilizar a alma…
Estranho mundo este que se esquece das pessoas com facilidade e se perde em devaneios supérfluos…
Um mundo que não está feito para os velhotes…Obvio que não.
Dão muito trabalho (demasiado mesmo…), como as crianças. Mas essas ao menos vão crescer, vão nos encher de orgulho com as suas brincadeiras, conquistas e provas de amor….Vão ser independentes. Vão cuidar de nós, esperamos…
O pretexto (re)apareceu…
É quase inconsciente. Na verdade nem são precisos pretextos para falar das coisas que me tocam de forma única…
Acontece-me com muita frequência lembrar-me
dele quando determinados estímulos me assaltam.
Desta vez foi
este texto e esta foto (sublimes) que me fizeram instantaneamente correr para a imagem do meu
Avô João.
É raro o dia em que não pense
nele…
Talvez por ser a pessoa mais bondosa e generosa que já conheci…
…Arrisco-me a dizer, sem qualquer pitada de sentimentalismo Fátima Lopes, que é a pessoa pela qual nutro mais carinho no mundo.
Talvez por ter sido sempre para mim um exemplo de humanismo, seriedade, carinho e bondade….Bondade em doses XL…
Na última temporada cá em casa, disse-me que estava cansado de viver…
Imagino que a caminho dos 94 anos haja pouco para aprender ou conquistar…
O dia a dia torna-se muitas vezes penoso…
As conquistas de quem passa o dia todo ora sentado ora deitado, para enganar a dor nas costas, resumem-se ao nº de telefonemas que recebe, às pessoas que perguntam por ele, aos títulos grandes dos jornais que não desiste de ler… Enfim, aos sinais que o Mundo lhe dá que não (ainda não…) se esqueceu dele…
Mas a caminho duma idade secular, escravo de ajuda de outra pessoa para fazer praticamente tudo, é complicado não se sentir invadido por um esmagador sentimento de inutilidade….
A qualidade de vida vai o abandonando, a cada ano, mês, semana que passa, como um veneno castrante.
O primeiro sinal de afastamento que senti de forma flagrante foi dado pela memória…
As memórias de há 40, 60, 80 anos atrás continuam presentes e as historias e aventuras duma vida são relatadas ao milímetro (com as mesmas pausas, suspiros, tiradas cómicas…) vezes sem conta.
Mas a memoria curta e imediata perdeu-se…Já não volta… Assim como a paciência dos mais “novos” em ouvir a mesma historia pela terceira vez no mesmo dia.
Também eu já as sei de cor, de trás para a frente, mas oiço-as com o entusiasmo da primeira vez só para não o desiludir nem trair o brilho que sente em ser o topo da pirâmide familiar…
No último ano, preparando-me para enganar o tempo, comecei a gravá-las a todas…
Chegar a esta idade com lucidez é a maior das conquistas. E ter um avô que tenta acompanhar o pelotão do Manoel de Oliveira é um orgulho especial…
Mas não consigo deixar de pensar que é duma injustiça gritante a corrida ter um fim…
É injusto um fim em queda para quem, como o Avô João, passou a vida toda a distribuir sorrisos e bons pensamentos...
Há uns tempos, li algures um texto que dizia que o processo natural de crescimento deveria ser inverso.
Ou seja, devíamos nascer velhos com barbas de sabedoria e mãos gretadas duma vida de trabalho, ir renascendo fisicamente, ganhando qualidade de vida, trabalhando cada vez menos, ganhando inocência e terminar a travessia com um regresso à barriga quentinho da mãe no expoente máximo de carinho e amor…
Seria, sem dúvida, um final mais colorido…Talvez o mundo fosse mais justo!