segunda-feira, setembro 17, 2007

O fim do Verão é feito disto

" Quando fotografava a ilha de França, vista do centro da ponte dos artistas, preparado como um fazedor de postais para a limpidez informativa da imagem sobre aquele lugar, uma mulher oriental atravessou-se diante de mim metida no seu mundo do qual nada sei.
A fotografia, que quis um lugar, encontrou uma pessoa, e hoje está no fundo do ecrã do meu computador e conta-me coisas abundantes sobre uma personagem perante a qual a minha imaginação acciona palavras.
É uma mulher feliz a que ali vejo. O passo decidido de quem está seguro do seu tempo. E é uma mulher a transparecer, por isso, é só remotamente desconhecida, porque aos meus olhos, e naquele fantástico segundo em que a paralisei, ela é uma identidade comum, um daqueles rostos aos quais assacamos identificações múltiplas com os nossos próprios sentimentos.
Quando descarreguei a fotografia para o computador, imediatamente tive a sensação grata de haver chegado a uma companhia mais importante. Essa companhia intangível mas significativa que algumas imagens são capazes de nos fazerem.
Fiquei longo tempo a rever aquela mulher, lamentando talvez o ser-me impossível saber quem é e, em ultima analise, mostrar-lhe como por surpresa a vi naquele dia. Mas é também fascinante que me entre pela vida adentro assim mesmo, uma desconhecida que me afecta. Muito bela, a caminho talvez de, um dia mais tarde em novo acaso, me reencontrar.
Numa noite, por obra e graça do insondável do inconsciente, sonhei falar-lhe. Sentámo-nos na ponte dos artistas, dissemos todas as coisas banais sobre Paris, beijámo-nos.
Disse-me que se chamava Ikue Turi, que só pode ser uma variação delirante de Ikue Mori, a compositora maluca e genial de quem gosto, e eu disse, Valter Hugo Mãe. Sorriu. Era-lhe impossível pronunciar o meu nome completo. Falámos em francês e eu deveria ter repetido o meu nome mas disse, tenho saudades tuas, e ela respondeu, não consigo dizê-lo, contudo é um nome lindo.
Fiquei com saudades dela. De uma desconhecida que a minha cabeça inventa substancialmente e que numa imagem me deixou registo da felicidade serena, da beleza feminina, e da espontaneidade. Um retrato sem correspondência, eu sei, mas algo me diz que, por intuição, ela se pôs assim para mim; para o ínfimo momento em que eu poderia ter, como se ela me tivesse querido pertencer também.
O fim do verão é feito disto. Misturado com as nortadas que começaram a destruir-nos definitivamente as noites na esplanada e a sugerir a caseira fórmula da leitura de um livro e o passeio virtual pelos blogues. É feito disto que nos traz a nostalgia de um pedaço de nós sobreviver apenas em férias, um pedaço mais romântico, mais carente, à cata de coisas inexplicáveis e tão fora das regras organizativas do quotidiano.
O amor, ou a paixão fugaz, é uma estridente excepção ao quotidiano, como uma falha na realidade, por tanto quanto tem de difícil fazer-se explicar e, menos ainda, deixar-se dominar. Eu sei que, desta vez, o meu amor de Verão foi ainda mais breve do que os outros, eu sei, mas o importante é reconhecê-lo, e preservá-lo nessa memória cuidada das melhores coisas que nos acontecem e começar a preocupar-me com o amor de Inverno, mais duradouro, mais perto. "
Valter Hugo Mãe - em Ípsilon, Sexta-feira 7 Setembro 2007

6 comentários:

Seamoon disse...

Muito mas mesmo muito bom !!
Adorei!
Fiquei curiosa para ver essa foto...
mil jinhos salgaditos!

Lara disse...

Tinha um desafio para ti no meu blog, mas caramba este texto excelente ja valeu e bem =)

poca disse...

li o texto plenamente convencida de que este era mais um daqueles teus textos valentes!
cheguei ao fim confiante que ias partilhar a foto connosco.
Vai-se a ver nem o texto é teu, nem a foto está lá.
Desiludida? Nãh.
Orgulhosa por saber que não é teu, mas que poderia ser ;P
E que às vezes nas palavras dos outros, encontramos as nossas.

beijo grande

CANHOTO* disse...

Atenção pessoal, o fantástico texto (para grd pena minha) não foi escrito por mim:)
O virtuoso escritor chama-se Valter Hugo Mãe e já tem 9 livros de poesia publicados.
Ainda não li nada dele, mas depois de ter descoberto este texto(com o qual me identifiquei e me revi nas palavras)no suplemento do jornal publico que compro religiosamente,(Concordo contigo e agradeço as tuas palavras bonitas Poca)vou procurá-lo numa livraria da baixa.
Boas escritas e leituras pra todos**

JSG disse...

Caro Canhoto

Como tu fizeste tuas as palavras dele, eu faço minhas as palavras da poca.

Toda a gente gosta de te ler, pena não escreveres mais assiduamente.

Um grande abraço amigo

Farruskko disse...

bom... jah que todos andam a fazer de todos as palavras de todos... eu faço minhas as palavras do baba. Pedro fodasse... muito bom.... nao, nao nao... muito bom... e tas lah capitao... no meio do engenheiro do hexa (refiro-me à geração de ouro do basquetebol algarvio... a de 79 obviamenente, que aqui e ali foi acompanhada pela de 80...) existe uma pedra filosofal. contente por ti (porque existe sensibilidade para além do tijolo de 9 ou 16), mas tambem por mim... por poder ter pessoas assim à minha volta. Abraço companheiro